É possível as associações realizarem assembleias virtuais?

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Por Lucas Seara[1] e Bianca Monteiro[2]


Um dos temas mais recorrentes nas consultas recebidas nas redes sociais do OSC LEGAL Instituto nos últimos meses foi sobre a possibilidade de realização de assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias de forma “virtual”[3] pelas associações. Tal necessidade surgiu em virtude do distanciamento social em função das restrições sanitárias impostas pela COVID-19, que deriva no reconhecimento do estado de calamidade pública sanitária no País[4], além das regulamentações estaduais e municipais neste tema.


As competências atribuídas às assembleias gerais ordinárias (aquelas com período expressamente determinado no estatuto para sua realização) ou extraordinárias (aquelas que são convocadas sempre que for necessário) são normalmente relacionadas às pautas de governança e gestão estratégica e que demonstram sua relevância.


Neste sentido as assembleias costumam deliberar sobre pautas fundamentais como: eleição de dirigentes, contratação de executivos, aprovação de parcerias, aprovação das contas, etc. Assim, por exemplo, caso não fosse possível realizar uma assembleia geral com a finalidade de eleger os dirigentes, poderíamos ter na prática o vencimento dos mandatos dos órgãos responsáveis pela gestão – independentemente do nome previsto no estatuto (diretoria, coordenação, presidência, etc.) – o que deixaria a entidade acéfala e impossibilitada de acessar as contas bancárias e movimentar recursos, dentre outras consequências[5].


Após um período de incertezas, em junho foi promulgada a Lei nº 14.010, de 10/06/2020[6], que instituiu normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19), pacificando o tema em relação à assembleia geral nas associações.


No art. 5º da Lei nº 14.010/2020 ficou expressamente autorizado a realização de assembleia geral nas associações por meios eletrônicos, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica. Assim, as associações passaram a ter autorização legal para realizar as assembleias gerais de forma “virtual”, inobstante a previsão estatutária.


No que diz respeito à realização de assembleias gerais, a Lei nº 14.030, de 28/07/2020[7], além de reiterar o disposto no art. 5º da Lei nº 14.010/2020, prevê no art. 7º, I, a prorrogação em até sete meses dos prazos para realização de assembleia geral e de duração do mandato de dirigentes, o que confere mais segurança jurídica e traz um alívio para as organizações que ainda não conseguiram realizar a assembleia.


Para as que decidiram por realizar a assembleia “virtual”, em primeiro lugar deve ser analisado se consta no estatuto da entidade a previsão da realização das assembleias nesta modalidade. Neste cenário, se a modalidade estiver prevista significa que a associação tem todo respaldo jurídico para realizá-la. Ocorre que grande parte dos estatutos sociais não contemplava a previsão de assembleias gerais “virtuais” e, por motivos óbvios, não havia como convocar uma assembleia para fazer essa alteração.


Para aquelas organizações em que o estatuto se mostra omisso neste tema, a assembleia poderá soberanamente decidir por fazê-la, registrando em ata todos os motivos e fundamentos pelos quais tomou essa decisão, buscando evitar quaisquer contestações da legalidade do procedimento no futuro.

Além das duas hipóteses acima abordadas, pode ser que o estatuto contemple uma terceira hipótese: vedação à realização de assembleias “virtuais”. A rigor, numa primeira análise, se o estatuto vedar a realização na modalidade virtual restaria aos dirigentes acolher o impeditivo e não realizar nesta modalidade, sob pena de anulação do ato jurídico por infringir regra associativa.


Contudo, vale a pena pensar que o Decreto federal de calamidade pública permite que algumas leis e regras sejam interpretadas de forma circunstancial, devido à absoluta necessidade de se tomar decisões rápidas efetivas e eficazes, considerando a excepcionalidade do período de restrições sanitárias.


Neste caso, sugere-se que a entidade repense tal proibição, convoque a assembleia e eventualmente exclua ou flexibilize as regras internas para oportunizar a realização das assembleias virtuais, pelo menos enquanto durar as restrições de realização de reuniões e encontros presenciais.

Outro tema fundamental é que além da possibilidade ou autorização para realizar as assembleias gerais “virtuais”, há necessidade de esclarecer como fazê-las.


Em relação ao procedimento, a Lei nº14.010/2020, art. 5º, parágrafo único, previu que a manifestação dos participantes poderá ocorrer por qualquer meio eletrônico indicado pelo administrador, desde que assegure a identificação do participante e a segurança do voto, e que produzirá todos os efeitos legais de uma assinatura presencial. Contudo, não ficou previsto uma única forma de comprovação relacionada a convocação, bem como participação e votos (manifestação de vontade), o que nos parece adequado, na medida em que existem diferentes formatos capazes de comprovar e garantir a legalidade já previstos no ordenamento jurídico[8].


Por outro lado, como não houve uma regulamentação específica para as assembleias “virtuais”, os cartórios têm feito uma interpretação própria sobre o tema. Por este motivo, recomenda-se consultar o cartório onde a associação foi registrada.


Para as associações que já tinham previsão estatutária da realização de assembleias “virtuais”, incluindo o procedimento adequado para sua validação e registro, não houve essa dificuldade. Contudo, mesmo estando previsto no estatuto, em alguns casos não havia clareza de como seria o procedimento para comprovar a realização da assembleia, motivo pelo qual a organização deve atender as exigências do cartório respectivo, assim como as organizações que não tinham a previsão estatutária.


Para ilustrar, observe um caso real de uma organização que, ao realizar a consulta diretamente cartório, foi informada de que os atos seriam válidos se a assembleia fosse realizada até mesmo por meio do aplicativo Whatsapp, desde que houvesse o inequívoco registro das presenças e das manifestações dos participantes. Salvo melhor juízo, é sabido que a melhor forma de comprovar a veracidade de uma troca de mensagens de “Whatsapp” é a elaboração de uma ata notarial da conversa (no cartório de notas), ou seja, para efetivamente ter valor jurídico esse tipo de exigência deveria ser realizada a ata, o que nos parece inapropriado.


Em outro caso concreto, um cartório nos informou só aceitar atas em papel, assinadas normalmente, mesmo que a reunião se dê virtualmente. O que nem nos cabe argumentar diante do cristalino contrassenso.


Contudo, apesar das dificuldades, vale registrar o trabalho de inúmeros cartórios que criaram mecanismos capazes de atestar a fidedignidade dos documentos e a segurança dos associados e de seus colaboradores. Uma das saídas adotadas foi o uso de e-mails para comprar a convocação, deliberação e confirmação das presenças tudo em conformidade com as regras previstas no estatuto, já que a única mudança foi o modo de realizar a assembleia.


Importante ainda destacar o recente reforço da lei nº 14.063, de 23/09/2020[9], que trata do uso de assinaturas eletrônicas nas interações com entes públicos e nos atos de pessoas jurídicas. Em seu art. 4º, esta lei classifica as assinaturas eletrônicas em três tipos:


– Simples: permite identificar o signatário; anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário;

– Avançada: utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil; está associada ao signatário de maneira unívoca; utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável;

– Qualificada: utiliza certificado digital emitidos pela ICP-Brasil, em conformidade com a Medida Provisória nº 2.200-2/2001[10].


No caso das assinaturas qualificadas, estas equivalem às clássicas assinaturas com firma reconhecida em cartório, de forma que são plenamente aceitas para as assembleias virtuais das associações, com base no art. 8º da Lei nº 14.063/2020.


Alguns cartórios ainda exigem que no registro das atas físicas a assinatura dos diretores (presidente ou diretor/coordenador geral) tenha firma reconhecida. No caso das atas eletrônicas, a assinatura destes exigirá, analogamente, uma assinatura qualificada. Para as demais assinaturas dos associados, que na modalidade física podiam ser apresentadas sem maiores formalidades, devem ser assinatura eletrônicas avançadas ou qualificadas.

 

Após consulta a diversos cartórios, entendemos que as assinaturas ordinárias dos associados a serem aplicadas nas atas das assembleias podem ser nas modalidades “qualificada” (como citado acima) ou “avançada”. No segundo caso, o serviço de certificação é ofertado por uma série de empresas, contudo o custo pode ser elevado para algumas organizações. Aqui reitera-se a dica de se consultar o cartório de origem sobre quais as empresas e tipos de certificação que os mesmos têm acatado como regular.


Uma ressalva a ser feita é que não valem as assinaturas digitalizadas, ou seja, quando uma pessoa assina um papel e digitaliza, por meio de um scanner, essa assinatura. Esta modalidade pode ser facilmente falsificada, não tem segurança de uma autenticidade e, portanto, não tem valor jurídico.


Então é importante ressaltar o cuidado com o registro das assembleias virtuais, atentando-se para alguns aspectos: estabelecer procedimentos eficazes e capazes de comprovar o envio da convocação, registro de presença que consiga comprovar a participação dos associados e associadas; atenção com as assinaturas digitais e suas modalidades previstas em lei, conforme já tratado; e todo cuidado com a redação das atas, apontando todas as pautas e pontos discutidos, com riqueza de detalhes, para que confiram embasamento fático e jurídico, se possível justificando a opção pela modalidade virtual.   

  

Por fim, e não menos importante, no que diz respeito à realização de assembleias gerais, a Lei nº 14.030, de 28/07/2020, prevê no art. 7º que as associações deverão observar as restrições à realização de reuniões e de assembleias presenciais até 31/12/2020, com observância das determinações sanitárias das autoridades locais.


A realização de reuniões e de assembleias virtuais está inserida neste contexto, ou seja, até 31/12/2020 a recomendação é que não sejam realizadas assembleias presenciais como regra geral.


Recomenda-se que os estatutos das associações sejam revistos ou elaborados contendo expressamente a possibilidade de se realizarem assembleias e reuniões na modalidade eletrônica, prevendo também o procedimento, a forma como acontecerá, desde a convocação até o registro, nos termos previstos nas leis e normas aplicáveis[11].


Desta forma, mesmo quando retornarem totalmente as atividades presenciais, pode ficar previsto a participação remota dos associados que não estejam fisicamente no local onde a assembleia ou reunião esteja se realizando.


É certo que a pandemia da COVID-19 trouxe uma série de aprendizados para as entidades, dentre eles a necessidade de se aprimorar a utilização das tecnologias comunicacionais e digitais para ampliar as possibilidades e instrumentos de gestão, de intervenção e atuação. A realização de reuniões e de assembleias virtuais está inserido neste contexto, as associações poderão ampliar a possibilidade de utilização dos meios eletrônicos, sempre em função de uma gestão mais eficiente e eficaz. 



[1] Lucas Seara. Advogado e consultor, Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (UFBA), Coordenador do OSC Legal Instituto

[2] Bianca Monteiro. Advogada, mentora, palestrante e escritora, coautora do livro “Roteiro do Terceiro Setor”. www.biancamonteiro.com.br.

[3]  As palavras digital, virtual e remoto muitas vezes são usadas como sinônimos, mas são coisas distintas. A reunião da assembleia será remota e se valerá de recursos digitais (como o computador) e a presença será virtual, pois a pessoa não está presente na reunião.

[4] Decreto Legislativo nº 06, de 20/03/2020 – Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

[5] Sobre as consequências do vencimento dos mandatos nas associações, ver o texto: Associação com mandato da direção vencido: o que fazer? De autoria de Lucas Seara e Benício Boida de Andrade Jr., disponível em https://medium.com/@osclegal/associa%C3%A7%C3%A3o-com-mandato-da-dire%C3%A7%C3%A3o-vencido-o-que-fazer-625ca80d29df

[6] Lei nº 14.010, de 10 de Junho de 2020 – Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).

[7] Lei nº 14.030, de 28 de julho de 2020 – Dispõe sobre as assembleias e as reuniões de sociedades anônimas, de sociedades limitadas, de sociedades cooperativas e de entidades de representação do cooperativismo durante o exercício de 2020; altera as Leis nos 5.764, de 16 de dezembro de 1971, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil); e dá outras providências.

[8] O assunto está longe de ser novo no Brasil, desde 2001 a medida provisória nº 2.200 de 24/08/2001 (ainda em vigor) dispõe sobre o tema no art. 1º: “Fica instituída a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.”

[9] Lei nº 14.063, de 23 de Setembro de 2020 – Dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos; e altera a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, a Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, e a Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001.

[10] Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de Agosto de 2001 – Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências

[11] Aqui vale ressaltar ainda o Decreto nº 10.278, de 18 de Março de 2020 – Regulamenta o disposto no inciso X do caput do art. 3º da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, e no art. 2º-A da Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, para estabelecer a técnica e os requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, a fim de que os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais.

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